A barragem é Tua! Agradeço, mas não posso aceitar.
Os pedais aceleravam conforme a vontade, depois, como era quase sempre a descer, entregávamos a face ao vento e, com as mãos, cravávamos o travão, nas rodas, não nos sonhos, onde mergulhávamos magneticamente.
Nas margens desta foz deixei muitas peugadas a olhar o Tua e o Douro e outras a curvarem-se à sua majestosa beleza de uma perspetiva diferente, ascendente e cónica. Nadei, sem cansar, a roçar os picos, em cima dos socalcos, entre os pescadores e agarrado às nuvens todos espelhados harmonicamente nesta bacia de água translúcida. Tudo era tão belo, tudo era tão natural. As pontes, que ligam os concelhos de Alijó e Carrazeda, estacionavam as sombras que se estendiam até às beiras para nos defender dos raios superiores a 40 graus, no rio serviam de pistas para corridas mais velozes. Para as brincadeiras mais audazes havia uma fraga de onde saltávamos. Éramos sempre muitos, oriundos de caminhos vizinhos ou até mais distantes. Existiam as correntes da amizade, da felicidade e as que vinham com a água e habituámo-nos a respeitá-las integralmente, tal como o silêncio, tal como a vista suspensa.
Havia uma barragem virtual para nós – talvez imposta por um código de conduta inato -, edificada pelo sentimento e pela força. Pelo sentimento profundo em usufruir com nobreza estes Rios e pela força coletiva de proteger todo este paraíso envolvente – o Douro. Os nossos pensamentos eram feitos de remoinhos de emoções e momentos únicos. Aqui, nem a noite caía vertiginosamente, deslizava serenamente com a determinação respeitosa de quem encontra um tesouro.
Até o Sol parava no tempo a apreciar a excelência da paisagem, mesmo assim, a jorna vencia e obrigava-nos a escalar os 12 km, que nos davam uma pequena amostra do ar de sofrimento que os homens e mulheres do Douro sentiam encostados às videiras (não aqueles outros famosos que estão nos gabinetes da sobranceria com ar condicionado). Quase sempre aparecia uma boleia que nos carregava os velocípedes e nos livrava do sacrifício de pedalar (já aqui procurávamos experimentar as benesses de alguns políticos de betão).
Fomos crescendo sem dar conta, absorvidos por estas águas e já com as bicicletas apeadas na estação da memória, por lá impressionávamos as nossas namoradas, fosse com a imponência da paisagem ou com um aceno ao comboio, fosse através daquelas saborosas laranjas de S. Mamede que ajudavam a trocar gomos doces por beijos melosos. A escuridão também era mágica, por isso, de quando em vez, os nossos olhos, os olhos dos casais, pareciam que tinham infravermelhos a projetar os vincos da paisagem pela retina. Como pirilampos, aconchegados pelo som da água, lavrávamos desejos e estabelecíamos promessas na esperança de um dia, pelo menos um de nós, perpassar esta instrução através do cordão umbilical. Gritávamos na boca da foz, contra as fragas do túnel, para que o eco testemunhasse este casamento. A este feito congénito, ouvíamos os mais cultos e sapientes chamar de cultura de um povo! Sinto-me feliz por fazer parte desta lenda.
Mas o tempo não estacionou e sem saber por que motivos ou exigências, alguém resolveu transformar a glória do céu puro que rompia estes vales, outrora imortais. Já não se ouve a mesma música, por que nem a água corre radiante, nem o ar sopra bons ventos, nem as fragas têm a mesma acústica. Ninguém consegue explicar por que o Homem é assim, capaz de afundar os seus próprios barcos.
Também eu me sinto a desaparecer como o fulgor das velhas locomotivas, mas não tenho que me resignar ao abandono destes carris. Sobram as memórias, as fotos, os vídeos e o regozijo de saber que há quadros de pintores emoldurados por esse mundo fora, para um dia conseguir provar ao meu filho que neste local existiu um milagre da natureza onde contracenei vivamente com os meus amigos num cenário idílico com pássaros, peixes, plantas e árvores que alguns fracos homens, políticos toucados, resolveram executar a troco de interesses egocêntricos, especulativos e oportunistas.
Era Tua, era meu, era nosso, agora é só deles!
Jorge Carvalho
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